domingo, 26 de fevereiro de 2012

sábado à noite

Eu e a Débora descemos até a cave, cheirava a pão e sopa. Conheci a Doreza e a Carla. A Doreza estuda, é simples e simpática. A Carla não, tem filhos e marido, é adulta.

No chão estavam sacos grandes cheios de vários sacos pequeninos, que por sua vez, estavam recheados de pão e bolachas. Enquanto carregamos a carrinha chega o Joãozinho com um monte de caixas cheias dos melhores bolos que alguma vez provei. Vêm da Garrett do Estoril. Carregamos os bolos também enquanto a Carla fuma o primeiro cigarro da noite.Entramos na carrinha e não tenho expectativas absolutamente nenhumas, para dizer a verdade não pensei muito em como seria aquela noite.

Primeira paragem: Um homem tenta abrir a porta da carrinha, quer ver-nos e falar-nos. A Carla, num tom ríspido, diz que não pode fazer aquilo. O homem diz que ela não presta. A Carla não responde enquanto tranca todas as portas e a Doreza distribui roupa. Calçamos luvas de borrada e trazemos um colete amarelo florescente, coisa que a princípio não me incomoda. Há velhos mas também há novos. Limpos, bonitos. Poderia ter passado por estas pessoas no metro e nunca havia de pensar que vivem na rua. Outros são sujos, loucos. Uns gostam de falar, eu também gostava mas fico calada. O George não fala português, tem um boné azul-escuro e um brinco na orelha esquerda, pede-me um saco com pão e bolachas e um copo de Coca-Cola. Eu sorrio e ele diz sorry por ter chocado a mão dele contra a minha ao tentar apanhar o copo. Eu digo: no problem, ele sorri e diz: it’s my problem not yours. Tem olhos azuis e a pele queimada e eu vou ficando cada vez mais calada. O amigo do George está envergonhado mas ainda assim olha para mim e sorri, pisca me o olho em jeito de obrigado, não fala. Fico a vê-lo ir se embora com o saco e o edredon branco que a Doreza lhe deu, até que vira uma esquina e deixo de o ver. Uma senhora vem falar comigo e com a Débora diz-nos que odeia bêbados, fala-nos dela e do marido. A Débora fala com ela, eu sorrio. Entramos na carrinha novamente e os meus pensamentos são interrompidos pela enxurrada de palavrões e disparates que vêm do banco da frente. A Carla fala o caminho inteiro, fala de como bebia com 14 anos, fala de como a Doutora da instituição a elogiou no primeiro dia de ronda, de como se tornou responsável de ronda. Conta também como, em tempos, não conseguia apertar a fralda do filho por ele ser de muito boa saúde…lá em baixo. Tenho os ouvidos cheios e desejo que ela não fale mais, mas continua a insultar todos os condutores que se cruzam connosco. De vez em quando pergunta-nos porque estamos tão caladas. Eu não respondo.

Segunda paragem: Estacionamos nas cargas e descargas do Saldanha, a carrinha é rodeada de gente. Fico a ver a Débora afastar-se com uma caixa de bolos e luvas de borracha enquanto organizo os sacos e os copos que irei encher com Coca-Cola. Aparece uma senhora com tantas camadas de maquilhagem e pó de talco que consigo ver-lhe os pelos da cara brancos. Quer dar-nos dois beijinhos, a mim e à Carla, assim que a mulher se vai embora a Carla limpa as bochechas às mangas do casaco, diz que não gosta. Dou uma espreitadela por trás da porta aberta da carrinha, com os olhos, procuro a Débora. A seguir vem uma rapariga da minha idade, vê-se que vem da Europa de Leste. Não diz nada, não olha para mim, dou-lhe a comida, vai-se embora. Espreito outra vez, lá está a Débora a sorrir. Vem um senhor com vergonha de nos estender os taparueres para os enchermos de sopa. Já sou mais simpática, digo lhe para os deixar todos, não lhe vejo os olhos porque tem um chapéu a tapa-los mas gostei dele. Disse se faz favor e obrigado. A Débora entra na carrinha para ir buscar mais um saco de pão e bolachas e ao mesmo tempo que o procura pergunta ao homem que lho pediu se, por acaso, já não lhe tinha dado um. Ao que ele lhe responde: se já me tivesse dado um não lhe estava a pedir, não acha? Arrumamos, fechamos tudo e preparamo-nos para ir embora. Neste momento aparece um rapaz, pede um bolo, pergunto-lhe se não lhe tinha já dado um bolo. Chegamos à conclusão que tem um irmão muito parecido, não lhe tinha mesmo dado bolo nenhum. Paramos, abro a porta da carrinha e chamo-o para vir buscar o bolo. Abrimos tudo outra vez e ele diz me assim: diga me lá como é que se deixa a fome para a próxima? Pede mais um copo de Coca-Cola mas não o ouvi, por isso pedi desculpa. Olha para mim e diz me: nunca peças desculpa quando dás comida, nós, é que temos de pedir desculpa. Diz obrigada. Gostei dele também. Fico a vê-lo sentar-se numas escadas onde está o homem com o chapéu. É novo, bonito, não é ignorante, podia ter o mundo.

Vamos ao piso inferior da Gare do Oriente. Está lotado. Dois rapazes novos, 18, talvez 19 anos vêm ter comigo. As luvas começam a incomodar-me, o colete amarelo também. Enquanto circulo ali em baixo a entregar sacos e copos de Coca-Cola penso que devia passar despercebida, senti que tinha uma bandeira vestida a dizer: olhem para mim a dar comida aos pobres e senti-me idiota.Fazemos uma pausa. Comemos um folhado misto com alface, igual àquele que tantas vezes comprei por 5€ na Garrett para o almoço. Falamos das pessoas com quem estivemos, falamos das histórias delas. A Carla fica a odiar-me quando digo que nunca sabemos se as histórias que as pessoas contam são verdade ou não, diz que temos sempre de acreditar…mas desconfiando sempre. Achei que não valia a pena dizer mais nada mas ela continuou. Diz que nos serviços sociais as pessoas passam sempre à frente quando têm cunhas, quando conhecem alguém lá dentro, e diz: é uma tristeza, mas pronto, é o país que temos. A próxima frase é para dizer que tem um amigo cirurgião, e que por isso, fez um raio-X esta semana sem marcação nem tempo de espera. Logo a seguir desculpa-se e diz que ajuda os pobres. Acha que o facto de distribuir alimentos lhe dá o direito de transgredir as regras e de usar as cunhas que tanto critica. Fiquei calada.

Voltamos com meia caixa de sopa, os bolos, salgados, Coca-Cola e os sacos de pão e bolachas foram todos distribuídos. Há muitas carrinhas na rua a fazer isto. Não ajudamos ninguém. Mantemo-los vivos.